sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O papel da arte para a individuação

O papel da arte para a individuação
 
O filme “Somos todos diferentes” (Taare Zameen Par, índia, 2007) produzido por Aamir Khan trata da história de um menino de 9 anos com dislexia que tem dificuldades de aprendizado, porém possui grande capacidade artística e de fantasia. Em seu contexto escolar sua individualidade não é percebida e nem respeitada e sua dificuldade tratada como mal comportamento. Porque não conseguia aprender, sentia-se desmotivado, distraindo-se facilmente.
                Tinha fascínio pelo mundo natural, peixes, poças de água, cachorros, passarinhos nos ninhos que o levavam a mergulhar no mundo da imaginação. Vivia num ritmo bem diferente do exigido pela sociedade. Tentaram enquadrá-lo num mundo cujas exigências iam contra sua natureza artística, livre e emocionada. O drama maior se deu quando foi separado de sua família para ver se o colégio interno dava “um jeito” em sua maneira de ser rebelde como era considerado.
Sozinho, distante da família, sem compreensão, numa escola rígida e com métodos de aprendizagem antiquados com castigos e palmatórias, o menino sofre até ficar deprimido. Nesse momento um professor substituto de artes e com métodos mais humanos o percebe. Não só o percebe, mas o vê. Consegue enxergar qual era sua real dificuldade e seu verdadeiro talento. Esse menino como o professor fala no filme poderia ter se perdido, surtado, desabado num abismo sem volta. Um professor sensível e realmente capacitado estendeu a mão e o ajudou. Mas o que antes fez com que chegasse a este estado depressivo e aparentemente sem saída foi o sistema, a sociedade. Tanto os pais quanto a escola exigiam uma adaptação do menino que estava além de sua capacidade.  Às vezes não se adaptar a um sistema doente pode ser um sinal de saúde. Esse processo de massificação que tole o indivíduo de seus instintos criativos, de sua individualidade, passou a ser tão nocivo para o menino do filme, que quase o destruiu psicologicamente falando.
Quantos meninos com histórias semelhantes a este devem existir no mundo? Quantos de nós mesmos já não nos sentimos roubados de nosso Ser (Self) devido a uma necessidade de adaptação? Reflexões essas que reclamam a alma!
Cabe ressaltar o papel importante que a arte teve no filme e tem na vida. É ela que faz expressar as emoções de uma alma calada a gritos e palmatórias. É a arte que faz ressucitar o Ser (Self) acuado e reprimido. Foi a arte que permitiu ao menino protagonista ser reconhecido e ter sua dignidade resgatada. Pois do menino que só lia letras dançantes ou espelhadas, tinha a alma flamejando em ricas cores. Seu movimento psíquico e vital era tanto que não cabia numa sala de aula com cadeiras dispostas em filas e metodologias enrijecidas. Tão pobre de espírito era a professora que gritava que não podia ver a jóia que cintilava nos olhos do menino. Com certeza o passarinho que piava ou as poças de água de chuva eram muito mais divertidas, e portanto cheias de vida.
Os pais preocupados com o mundo competitivo, com resultados e sucesso, também não enxergavam o garoto. Suas almas também estavam devorados por Cronos, o Deus do tempo. Num ritmo frenético que descompassa o coração, aceleravam o menino que bailava com as poças, se deitava com os cachorros e voava em sua imaginação. Transferiram a responsabilidade para o colégio interno, em regime militar onde até marcha os meninos tinham que aprender. E quem não marchasse direito, era rechaçado, assim como quem não entrasse na massa era desqualificado.
Quando o menino já estava mergulhado num inferno, acuado e rejeitado, o professor substituto de artes, chega como um Ser mais individuado e humano oferecendo a ajuda e a inspiração necessárias. A relação dos dois, o resgata das profundezas e faz emergir seu real talento expressivo. Um Ser individuado e criativo tem o poder de inspirar outros a se tornarem também individuados e criativos. Esse professor faz a ponte do menino com ele mesmo, com seu real potencial e talento, dele com os pais. E ainda traz de volta aos professores uma oportunidade de resgatarem sua criança interior. Na competição de artes, o convite se estende aos professores que revisitam suas infâncias adormecidas ao sentarem no chão e deixarem fluir a imaginação. A inspiração vinda desse professor foi tanta que consegue facilitar a transformação da escola, a partir da humanização dos professores.
Vejo o quanto de curativo e restaurador foi essa relação do professor com o aluno tido como problemático, do professor com os outros professores e também do menino com os pais:  Proporcionou relacionamentos mais verdadeiros, tornando a escola um lugar mais propício a real aprendizagem e desenvolvimento de individualidades. Porque ele mesmo passou dificuldades de aprendizado em sua infância, e possivelmente enfrentou desafios semelhantes, pôde escutar uma demanda silenciosa. O professor foi mais do que um professor, foi um curador arquetípico: O curador ferido.
Ele mostrou que o menino apenas via o mundo de forma diferente e não errada. E que de formas alternativas de ver é que se faz a diferença no mundo, como cientistas e gênios consagrados mudaram o rumo da história.
O processo de individuação significa tornar-se aquilo que já se é. Descobrir-se, desvelar-se, leva a uma sensação de realização, ao mesmo tempo de auto-valorização e auto-estima. A expressão criativa através da arte torna visível o mundo interno, pelas imagens criadas, tons, cores, gestos, pinceladas, esculturas, construções ou escrita. A arte revela, anuncia, expressa dores, sintomas e potenciais adormecidos. Apresentar um material de arte para uma pessoa é favorecer um encontro dela com ela mesmo,  colocando-o num confronto com sua própria alma. É servir de ponte ao que precisa atravessar, é partejar o novo, é ajudar a pessoa a contar uma nova história, facilitando com que a vida possa voltar a fluir.
No filme como na vida, existem desafios que todos temos que enfrentar. A arte pode ser o espelho que nos leva a enxergar com maior clareza as imagens que revelam os estados da alma. A arte pode ser o veículo que nos leva a muitas estações e nos ensina a pilotar e escolher direções na jornada da vida.
Sílvia Rocha – Psicóloga formada pela UERJ (crp:05/21756), especialista em Psicologia Junguiana (IBMR), Arteterepeuta e Terapeuta Familiar Sistêmica
Contato: e-mail: silviaayani@gmail.com