terça-feira, 7 de outubro de 2014

Espelho espelho meu...


Espelho espelho meu...

“Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”- Humberto Maturana

                Ainda sobre o arquétipo do visionário, da obra de Angeles Ariens, O Caminho Quádruplo, citado na outra semana, podemos nos deparar com nossa capacidade de ver. Ver o outro, a realidade, a si mesmo. Achamos que vemos nitidamente, porém estamos influenciados e cheios de referências internas que não nos ajudam a ver com clareza.

Com o conceito de Auto-poieses de Maturana e Varela, cai por terra a baixo a noção de que podemos apreender o mundo através de nossas percepções. Auto (si mesmo) Poiesis (criação ou produção) significa que estamos a todo momento nos auto-criando e reforçando nossa identidade de quem acreditamos que somos.  A realidade não entra de fora para dentro, não construímos  representações de uma realidade exterior objetiva. E sim atribuímos ao ambiente, padrões de comportamento de nossa lógica interna de organização. Através da contínua atualização dos padrões internos estamos permanentemente produzindo a nós mesmos numa auto-organização.

Assim nossas crenças a respeito do mundo, das pessoas, das relações, dos sistemas políticos, e de nós mesmos, fazem uma retroalimentação e continuam a se manifestar mesmo que não concordemos ou até mesmo não desejemos manter as coisas como estão. Reforçamos o que percebemos e o que percebemos tem a ver com quem somos. Então, precisamos mudar a nós mesmos se o que vemos não nos agrada. Não estamos fora do mundo como um expectador que pode julgar e criticar o que vê sem se implicar nele. Desde o advento da Física quântica não podemos mais falar em neutralidade do observador. Influenciamos o que vemos.

Em outras palavras projetamos quem somos na realidade que vemos. Percebemos através de filtros, selecionamos de acordo com nosso mapa interno. Por isso é preciso questionar sempre a formação destes filtros e limpá-los de vez em quando. A auto-reflexão parece ser o caminho para essa “limpeza”.  É o espelho se voltando para dentro. Se pararmos pra pensar que o que estamos vendo é um reflexo nosso, podemos talvez começar a ter alguma abertura para o novo.

Questionar que crenças nutrimos sobre nós mesmos vai nos dizer sobre nossa auto-estima e auto-valorização. Para quem não tem costume de se auto-observar e trabalhar sobre seu próprio auto-conhecimento, projetar em outra pessoa tanto seu lado admirável quanto seu lado abominável, torna-se fácil. Partes não integradas pela consciência vão para o lado de fora. Assim se não assumo minha capacidade de liderança, percebo-a em alguém que exerce-a com brilhantismo e posso passar a admirar essa pessoa, acreditando que nunca serei como ela. São chamados de espelhos claros, segundo Ariens, aqueles que nos refletem, porém continuamos a idealizar. Não somos capazes de ver que também temos capacidade de liderança, por exemplo. Podemos trocar a liderança por beleza, inteligência, esperteza, simpatia, sociabilidade, poder, disposição, etc.

Quando essa admiração vem com um sentimento rancoroso, podemos chamá-la de inveja. Que nada mais é do que in (não) veja (ver), quando não vemos que também podemos ser como o outro. Somos todos espelhos uns para os outros. E podemos trocar a inveja ou admiração por inspiração. O que o outro me provoca pode ser de grande valia para meu próprio desenvolvimento. Ele pode me inspirar a também alcançar algo. Basta sair da atitude comodista de apontar o dedo para o outro e mergulhar em si mesmo.

Espelhos esfumaçados são as pessoas com as quais sentimos dificuldades e não queremos parecer com elas de jeito nenhum. Como filhos que não querem se parecer com seus pais e de tanto fugirem dessa imagem acabam por imitá-los mais cedo ou mais tarde. Espelhos rachados são as pessoas que amamos e admiramos, mas por algum motivo sentimos medo ou constrangimento diante delas. Para perceber uma projeção, basta pensar em algo que o irrita muito no outro. Agora pare para pensar se isso faz parte de você, aquilo que você deseja fortemente esconder. O conteúdo da projeção geralmente tem uma carga emocional e energética forte, tanto boa quanto ruim.

É difícil ver o outro como ele realmente é, uma boa dose de projeção e fantasia sempre acontece. É incrível como alguns jovens casais apaixonados que acreditam que encontraram suas almas gêmeas no início, passam a odiar seus respectivos com o tempo. A base da decepção é a projeção, quando tapamos o sol com a peneira, e só queremos ver o que o outro tem de bom. Conhecer o outro requer tempo e maturidade.

 Todo ser humano é um conjunto muito interessante de luz e sombra. E se dermos oportunidade aqueles que nos espelham podem se tornar nossos grandes mestres.

Sílvia Rocha - psicóloga

Um comentário:

  1. Sabia que "inveja" significa "não ver", mas você mostrou, nesse texto, um sentido diferente para esse "não ver". Mas é interessante como, muitas vezes, justamente quando fugimos de uma imagem, mais nos parecemos com ela. Justamente como acontece nas relações entre pais e filhos.

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