Espelho espelho
meu...
“Não vemos as coisas
como são, vemos as coisas como somos”- Humberto Maturana
Ainda sobre o arquétipo do visionário, da obra de
Angeles Ariens, O Caminho Quádruplo, citado na outra semana, podemos nos
deparar com nossa capacidade de ver. Ver o outro, a realidade, a si mesmo.
Achamos que vemos nitidamente, porém estamos influenciados e cheios de
referências internas que não nos ajudam a ver com clareza.
Com o conceito de Auto-poieses de Maturana e Varela, cai
por terra a baixo a noção de que podemos apreender o mundo através de nossas
percepções. Auto (si mesmo) Poiesis (criação ou produção) significa
que estamos a todo momento nos auto-criando e reforçando nossa identidade de
quem acreditamos que somos. A
realidade não entra de fora para dentro, não construímos representações de uma realidade exterior
objetiva. E sim atribuímos ao ambiente, padrões de comportamento de nossa
lógica interna de organização. Através da contínua atualização dos padrões
internos estamos permanentemente produzindo a nós mesmos numa auto-organização.
Assim nossas crenças a respeito do mundo, das pessoas, das relações, dos
sistemas políticos, e de nós mesmos, fazem uma retroalimentação e continuam a
se manifestar mesmo que não concordemos ou até mesmo não desejemos manter as
coisas como estão. Reforçamos o que percebemos e o que percebemos tem a ver com
quem somos. Então, precisamos mudar a nós mesmos se o que vemos não nos agrada.
Não estamos fora do mundo como um expectador que pode julgar e criticar o que
vê sem se implicar nele. Desde o advento da Física quântica não podemos mais
falar em neutralidade do observador. Influenciamos o que vemos.
Em outras palavras projetamos quem somos na realidade que vemos.
Percebemos através de filtros, selecionamos de acordo com nosso mapa interno. Por
isso é preciso questionar sempre a formação destes filtros e limpá-los de vez
em quando. A auto-reflexão parece ser o caminho para essa “limpeza”. É o espelho se voltando para dentro. Se
pararmos pra pensar que o que estamos vendo é um reflexo nosso, podemos talvez
começar a ter alguma abertura para o novo.
Questionar que crenças nutrimos sobre nós mesmos vai nos dizer sobre
nossa auto-estima e auto-valorização. Para quem não tem costume de se
auto-observar e trabalhar sobre seu próprio auto-conhecimento, projetar em
outra pessoa tanto seu lado admirável quanto seu lado abominável, torna-se
fácil. Partes não integradas pela consciência vão para o lado de fora. Assim se
não assumo minha capacidade de liderança, percebo-a em alguém que exerce-a com
brilhantismo e posso passar a admirar essa pessoa, acreditando que nunca serei
como ela. São chamados de espelhos claros,
segundo Ariens, aqueles que nos refletem, porém continuamos a idealizar. Não
somos capazes de ver que também temos capacidade de liderança, por exemplo.
Podemos trocar a liderança por beleza, inteligência, esperteza, simpatia, sociabilidade,
poder, disposição, etc.
Quando essa admiração vem com um sentimento rancoroso, podemos chamá-la
de inveja. Que nada mais é do que in
(não) veja (ver), quando não vemos
que também podemos ser como o outro. Somos todos espelhos uns para os outros. E
podemos trocar a inveja ou admiração por inspiração. O que o outro me provoca
pode ser de grande valia para meu próprio desenvolvimento. Ele pode me inspirar
a também alcançar algo. Basta sair da atitude comodista de apontar o dedo para
o outro e mergulhar em si mesmo.
Espelhos esfumaçados são as
pessoas com as quais sentimos dificuldades e não queremos parecer com elas de
jeito nenhum. Como filhos que não querem se parecer com seus pais e de tanto
fugirem dessa imagem acabam por imitá-los mais cedo ou mais tarde. Espelhos rachados são as pessoas que
amamos e admiramos, mas por algum motivo sentimos medo ou constrangimento
diante delas. Para perceber uma projeção, basta pensar em algo que o irrita
muito no outro. Agora pare para pensar se isso faz parte de você, aquilo que
você deseja fortemente esconder. O conteúdo da projeção geralmente tem uma
carga emocional e energética forte, tanto boa quanto ruim.
É difícil ver o outro como ele realmente é, uma boa dose de projeção e
fantasia sempre acontece. É incrível como alguns jovens casais apaixonados que
acreditam que encontraram suas almas gêmeas no início, passam a odiar seus
respectivos com o tempo. A base da decepção é a projeção, quando tapamos o sol
com a peneira, e só queremos ver o que o outro tem de bom. Conhecer o outro
requer tempo e maturidade.
Todo ser humano é um conjunto
muito interessante de luz e sombra. E se dermos oportunidade aqueles que nos
espelham podem se tornar nossos grandes mestres.
Sílvia Rocha - psicóloga
Sabia que "inveja" significa "não ver", mas você mostrou, nesse texto, um sentido diferente para esse "não ver". Mas é interessante como, muitas vezes, justamente quando fugimos de uma imagem, mais nos parecemos com ela. Justamente como acontece nas relações entre pais e filhos.
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