Era uma vez uma história
Diário de Teresópolis, 03 de abril de 2014
“O homem tem uma origem e um destino. A menos que se lembre
disso, perderá a ambos.”
(Sufismo no Ocidente)
Quem não tem uma história para
contar? Um caso, ou “causo”, história de pescador, de infância, memórias,
relatos, história sobre os outros, coletivas ou compartilhadas onde cada um
acrescenta um ponto? Ao contarmos escrevemos história ou a história nos
escreve? O passado é revisitado quando contamos e ainda o significado do evento
ocorrido é atualizado. Quem narra sua própria história é dono dela, apropria-se
de sua vida, empodera-se, reforça sua identidade.
Até determinada idade os adultos contam a
história da criança, como ela foi, do que ela gostava, como agia, e esse relato
ajuda a construir sua auto-imagem e reforçar comportamentos. Quando as
lembranças já se tornam mais nítidas é sinal de que já é possível ser o
narrador de sua própria biografia.
Cada um tem sua história contada
a partir de seu ponto de vista. Pode-se enfatizar pontos negativos, positivos,
lições aprendidas, e um conjunto de tudo isso. Entrevistar parentes mais velhos
sobre histórias de família permite tecer uma trama composta e trazer mais
consciência de si. Como nos avisa Chimamanda Adichie, contadora de histórias
nigeriana, o perigo de uma só história é criar um estereótipo, uma visão
incompleta e limitada da realidade e que pode tirar a dignidade de uma pessoa,
um povo, um país. Em suas palavras: “Mostre a um povo que ele é uma única
coisa, repetidamente, e é isso que ele se tornará. (...)Histórias importam e
tem sido usadas para expropriar mas também para capacitar e empoderar. Para
tirar a dignidade e também para repará-la”.
Antigamente e até hoje entre
certos povos é comum a transmissão oral de histórias que trazem ensinamentos e
valores. Hoje a televisão ocupa um lugar que antes era o de compartilhar entre
gerações. Assim a memória de histórias passadas e vividas caem no esquecimento
e levam junto a identidade familiar e a força ancestral, criando sintomas e
questões que poderiam ser resolvidas com a consciência histórica. Escutar o
desfecho de uma história contada pelo próprio autor inspira e motiva novas
possibilidades de ação, permite a articulação de experiências diversas, a
partir do exemplo e da referência.
Já histórias universais como os
mitos e contos de fadas falam diretamente à nossa alma porque são atemporais e
atuam como um espelho, na medida em que a pessoa se identifica com os
personagens e enredos. Além de transmitirem conhecimento e cultura, esses
contos atuam ainda como guias por apresentarem recursos criativos e soluções
para inúmeros problemas, tornando-se uma técnica terapêutica de auxílio à
mudança.
Milton Erickson, hipnoterapeuta
inventava metáforas que guiavam e traziam novas possibilidades para seus
pacientes. Pensamentos são histórias que contamos para nós mesmos. Então nos
condicionamos e criamos um mundo a partir de nossas fantasias, criando saúde ou doença, mantendo ou transformando
padrões de pensamentos.
Certas histórias caem como uma
luva no momento certo em que vivemos alguma situação, pois apontam uma nova
direção, despertam reflexão, transformam emoções, ampliam percepções. Como diz
Clarissa Pinkola Éstes, em Mulheres que correm com os lobos, histórias são
bálsamos de cura. Elas são diversão mas também arte medicinal, entretém e
orientam. Entre nativos da floresta amazônica, existem os pajés das ervas, os
pajés de cantos e os pajés contadores de histórias. Para cada doença, uma
história.
Já sob o olhar de Jung e da
complexidade humana é a psique que se “encaixa” em vários mitos de várias
culturas ao redor do mundo. Vivemos mitos sem perceber e parecem que se
tornam o script de nossa vida.
Segundo os biólogos chilenos Maturana e Varela,
os sistemas vivos são auto-poiéticos, criam-se a si mesmos. Paradigmas
funcionam como uma estrutura e sustentação mas também limitam a novos
horizontes. Construímos o mundo em que vivemos a partir de nossas percepções
sobre ele, e é nossa estrutura que permite essas percepções. Então, nosso mundo
é a visão que temos dele, nos recriamos a cada instante a partir das histórias
que ouvimos e contamos. Somos essas histórias.
Compartilhar, narrar e escutar pode
ser um grande momento de renovação de si mesmo com abertura à imaginação, à
criatividade, ao mundo das idéias inovadoras.
E você, que histórias tem vivido e contado? Está
enredado, batendo sempre na mesma tecla? Somos personagens da nossa vida, mas
também somos os autores
e diretores. Sílvia Rocha
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